Ah, o exílio

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Faz uns três meses, entrevistei um ex-General da época da ditadura aqui na Argentina. Fui encontrá-lo em um café em Belgrano e, quem o via ali sentado, podia perfeitamente se confundir com um velhinho qualquer. Um amor, uma doçura. Quando se deu conta de que eu era brasileiro, começou a me perguntar o nome de alguns outros cariocas conhecidos para ver se havia alguma coincidência. “Gente muito boa, muito cheia de princípios”, dizia – e como eu poderia duvidar se eram amigos daquela simpatia?

Foi só depois quando a conversa se desenvolveu que eu comecei a visualizar quem seria essa galera que, muito provavelmente, comigo só compartilhava a cidade mesmo; pois o tal general me contou algumas das maiores barbaridades que eu já ouvi na vida assim ao vivo.

Desaparecidos durante a ditadura? “Invencionismo! Eles eram guerrilheiros que morreram em combate”. Mas e os bebês que foram forçados a adoção e que estavam aparecendo nos últimos anos? “Uma farsa também. Essas Avós da Praça de Maio são uma máfia, elas alugam netos de mentirinha para construir esse relato midiático e para que o Estado lhes pague indenizações milionárias”. Para ele, esse papo de direitos humanos era parte de uma conspiração internacional, capitaneada pela Inglaterra, para debilitar a Argentina.

Saí de lá cabisbaixo e com uma sensação de impotência. Por que não fui capaz de interromper a entrevista e me mandar dali, ao invés de, como fiz, levantar o cenho e fazer cara de interessante só pra esperar acabar? Profissionalismo? Resignação? Naquela noite assisti, novamente, esse filme recente sobre a Hannah Arendt pra relembrar aquele conceito da ‘banalidade do mal’, já que acabara de ter a oportunidade de testemunhá-lo tão próximo.

O mal é político e histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional para isso. A trivialização da violência corresponde ao vazio do pensamento, onde a banalidade do mal se instala.

“Peralá…”, me detive. Não teria sido preciso entrevistar a um criminoso como aquele para fazer esse tipo de associação.

Vim para a Argentina no começo de 2013. A Dilma já era presidenta há aproximadamente dois anos e não existia sequer um rastro da crise multidimensional que o Brasil vive hoje. Crise, vivia a Argentina – cheguei justo quando as restrições cambiais estavam no auge e a distorção entre o câmbio real e o paralelo era tamanha que fazia a moeda brasileira ganhar um poder de compra impressionante. Uma passagem de metrô custava aqui R$ 0,80 quando muito e sair para jantar no restaurante mais elegante de Palermo Hollywood não saia por mais de R$ 200 para um casal, com bebida alcóolica incluída.

O Brasil seria sede da Copa do Mundo, depois das Olimpíadas; na minha faculdade (comecei a cursar o Mestrado de Relações Internacionais da FLACSO), em debates informais, alguns professores diziam coisas como: “nós não nos importamos com o fato de que o Brasil seja os Estados Unidos da região, só queremos ser o Canadá e não o México do Mercosul”. Falávamos da redução da violência urbana no Rio e em SP, os impressionantes programas que haviam estreitado um pouco a brecha social do país, etc, etc, etc.

Quando as primeiras manifestações pelos 0,20 da passagem de ônibus estouraram em SP, rapidamente se espalhando por outras capitais, os argentinos foram realmente pegos de surpresa. “Che, Manoel, ¿que está pasando en Brasil?“, me perguntavam incrédulos e eu entabulava uma explicação qualquer. Talvez fosse uma moda de outono-inverno e dali a pouco tudo voltasse ao normal. Quando os black-blocks começaram a quebrar tudo, fui impedido de me chocar com o comportamento dos Quebracho, que marcham de vez em quando por aqui com a cara coberta e um ameaçador pedaço de pau na mão.

Olhando em retrospectiva, soavam os primeiros tambores de uma guerra que, de lá para cá, foram mudando toda uma memória que eu tinha de casa, de modo que se alguém me pergunta atualmente que está pasando en Brasil, eu só encolho os ombros – talvez acompanhada de: “la gente allá está loca“.

Se o período eleitoral do ano passado foi aquela sujeira, o fruto foi pior do que a encomenda. Alguém sabia quem era Eduardo Cunha antes dessas eleições? Eu, não. Aliás, quando eu me despedia do Brasil no início de 2013, uma figura dessas, assim como Jair Bolsonaro e Silas Malafaia, era parte do folclore que um dia já foi ocupado pelo General Newton Cruz e o Pastor Edir Macedo. Seja chutando uma estátua de Nossa Senhora, seja falando algumas impropriedades com a seriedade de um Buster Keaton, nós ríamos deles com a tranquilidade de uma página virada.

Quando entrevistei o general da ditadura argentina e cheguei à Hannah Arendt, ainda os via inofensivos, como parte de uma cota de lunáticos que deve existir em qualquer país do mundo. Entretanto, ao observar de longe o que essa cota de lunáticos tem feito no coração político do Brasil, a câmara baixa, tudo corrobora a sensação de que Argentina se transformou para mim – e para alguns amigos brasileiros daqui – num exílio.

Exílio de um espaço institucional em que viceja um mal a la Hanna Arendt, alentado pela cumplicidade de meios de comunicação e partidos da oposição “ilustrada” que parecem ter encontrado “idiotas úteis” para infernizar a vida da presidente eleita. Página virada, que nada! Enquanto no Congresso se articulam manobras descaradas para fazer passar leis da agenda mais conservadora, realizando votações repetidas até que baixas negociatas façam efeito, sumidades intelectuais como Fernando Henrique Cardoso e editoriais dos maiores jornais do país se concentram em reproduzir e espetacularizar delações premiadas em série num esforço tremendo para encontrar a conexão de qualquer tipo de delito com a presidenta e com Lula. Exílio dos filhotes dessa cretinice, que, num circo de horrores inundam as redes sociais com comentários estranhos ao período histórico em que vivemos, supostamente pós-Revolução Sexual, pós-Rosa Parks, pós-, sejamos sinceros, Revolução Francesa.

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Eu entendo que esse post é um peixe fora d’água num blog de informações sobre a Argentina, mas veja bem… eu só queria aquele meu país que parecia olhar tanto para o futuro de volta. Quando vim para cá, pensei que sentiria saudade dele, mas tinha uma certeza inabalável de que ele estaria lá me esperando voltar. Esse Brasil de Eduardo Cunha não é o mesmo que o meu.

2 comentários sobre “Ah, o exílio

    • Bota estranho nisso! Igrejas sendo queimadas nos EUA, Europa brutalizando a Grécia, Brasil dessa maneira…

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