Em setembro do ano passado, depois de três anos vivendo em Buenos Aires, fiz uma visita ao meu Rio de Janeiro para comemorar o aniversário. Nunca mais voltei, não pude nem me despedir dos amigos, nem do apartamento, nem da família recém-adquirida, nem das minhas comidas. Tudo muito repentino, como se fosse uma fuga. E talvez fosse.
Minha vida na Argentina tinha se retorcido já muitas vezes entre um ambiente acadêmico bastante festivo na FLACSO e uma vida profissional instável, mas surpreendentemente prolífica: clientes de tradução razoavelmente fieis no Brasil pagando em real forte e aventuras tão rocambolescas quanto o trabalho de correspondente internacional para a TV iraniana. Entretanto, setembro e suas contas (aluguel, cartão de crédito, luz, gás e telefone) entravam rasgando e tanto eu quanto o meu marido estávamos desempregados.
Viajar ao Brasil para celebrar o meu aniversário entre amigos e família, dessa maneira, adquiria um certo ar de loucura e de fato seria, não fosse uma promissora entrevista de trabalho que podia, de repente, mudar tudo. Não havia estardalhaço em torno dessa possibilidade, mas mesmo antes dos eventos que foram atrasando seguidamente a volta a Buenos Aires naquele setembro e depois outubro e depois novembro, tratava-se de um plano secreto emergencial.
Tudo acabou se acomodando no Rio. Alejandro veio me encontrar em dezembro e, lentamente, fomos recompondo o equilíbrio de ter nosso próprio canto e, enfim, uma renda; mas aquela despedida de Buenos Aires ficou pendente. Não como uma coisa que, no entanto, pudesse ser suprimida.
Até por força desse blog, uma pequena obra de narcisismo que jamais me rendeu sequer um mísero peso, eu acabei me imiscuindo de uma certa vida argentina – política, social e econômica – que só é vivida pelos expatriados mais curiosos. Acrescente-se a isso o bom grupo de amigos locais que eu soube cultivar e a família do meu marido, imensa e essencialmente ítalo-argentina, gregária e dramática, altamente inclusiva.
O enredo dos acontecimentos políticos naquele período entre meados de 2014 e o meu retorno abrupto, ademais, também contribuíram para uma existência mezzo fabular que incluía tramas de espionagem e grandes comícios na praça de Maio e na praça do Congresso. Era o eclipse do kirchnerismo, muito mais espetacular do que a melancólica decadência petista que vivemos no Brasil hoje em dia.
Ler meu diário daqueles últimos meses é, literalmente, um barato: os manifestantes Quebracho com seus rostos cobertos com lenços palestinos e paus na mão, Cristina levantando multidões na abertura do ano legislativo, o rosto de Nestor balançando bandeiras, as idas e vindas do assassinato/suicídio do procurador Alberto Nisman.
E foi embalado nessas memórias que parecem extraídas de um documentário vintage que eu me preparei para a visita curta e inesperada por razões de trabalho semana passada. Seriam dois dias em que eu teria de condensar uma despedida que já estava no ar fazia oito meses.
Cheguei ao Aeroparque de manhã cedinho. Na madrugada anterior, havia praticamente emendado uma festa de aniversário, com arrumar a mala e correr para o Galeão – o que me valera esquecer a jaqueta de frio pelo caminho. Àquela altura não sabia se em casa, no taxi, no avião ou em um dos aeroportos.
Já em Buenos Aires, tentei um Uber, mas não consegui nada. Perguntei pela possibilidade de um ônibus, mas as regras haviam mudado: “agora só com a tarjeta SUBE”, o equivalente deles do Bilhete Único, me disse o rapaz do balcão de informação ao turista.
Falei com meu espanhol perfeito, quase sem sotaque e ele me perguntou se eu era brasileiro. Respondi que sim, mas esclareci que havia vivido por lá mais de três anos e que mi pareja es argentina. Essa informação eu senti necessidade de dar a praticamente todos os estranhos que me cruzaram o caminho, como se, de alguma maneira, eu precisasse afirmar a minha condição diferenciada do turista brasileiro comum, por lá sempre tão numeroso.
Tomei um taxi que me saiu os olhos da cara, muito mais do que eu havia calculado. O mesmo ocorrera quando, ainda no aeroporto, comprei meu primeiro maço de cigarros – que “na minha época” era 25 pesos e agora estava cinquenta. Antes que eu me desse conta por completo, minha primeira grana em moeda local, trocada ainda na saída do check-in já estava acabando, porque absolutamente TUDO subiu de preço e muito nos últimos meses em que estive fora.
“Agora você imagina nós que temos que pagar a conta de luz”, falou o motorista do táxi como refutasse o meu espanto pela bandeira frenética. “Subiu mais de 600%!”.
O meu apartamento em Palermo, um quarto e sala mais pátio não muito grande, tinha uma conta de luz que não passava de 180 pesos ou pouco mais de 40 reais – um valor irrisório. Com o aumento alardeado pelo taxista, deve ter se ajustado ao valor que se paga no Brasil; mas imagine-se esse efeito, somado ao de todas as outras taxas de utilidade, se alastrando sobre todos os outros preços em cadeia, nos restaurantes, nos supermercados, em tudo.
Mais tarde, quando fosse ir matar as saudades do meu café cortado com três medialunas, do meu combo favorito de sanduíche com batata frita e cerveja, da minha fatia de pizza com fainá, das minhas facturas – tudo – o preço sempre viria carregado daquela sensação de que algo havia mudado em Buenos Aires e não necessariamente para o bem.
Pairava um certo ar de ressaca do turbulento fim do kirchnerismo, curado certamente por todos os banhos de água fria que o recém-nascido macrismo dera em todos os argentinos – pelo menos os que eu conhecia. Aqui não me arrisco em fazer análise econômica, muito menos exercício de futurismo para tentar descobrir no que isso tudo dará, mas certamente eu vi uma Buenos Aires despida do épico relato de Cristina e de seus partidários – alguns dos quais a haviam traído e outros figuravam em um noticiário político-midiático digno de uma caça às bruxas.
As ruas da Recoleta, onde fiquei hospedado na casa de um grande amigo, estavam quietas e frias. Fiz o taxi parar umas cinco quadras antes para fumar um cigarro e ter meu primeiro reencontro solitário com as ruas de Buenos Aires.
Nos dois dias seguintes, embora houvesse muita gente que precisava ver, reservei boa parte do meu tempo para disfrutar daquele que sempre foi um grande prazer naquela grandíssima cidade: caminhar pelas amplas avenidas porteñas longamente, silenciosamente ou com os ouvidos grudados no headphone, vendo aqueles personagens com quem eu havia convivido tanto tempo e que pareciam naquele momento saltar direto da minha memória. Tudo isso sob o impacto de apenas algumas doze horas atrás estar tomando um chopp com os amigos de sempre no boteco Sat’s em Copacabana. Escutei ‘Universos Paralelos’ do Jorge Drexler, um habitué das minhas playlists de outrora – outro barato – mas também ‘Hecho en Buenos Aires’ do Bersuit e ‘Nosotros’ do Babasónicos.
Depois de me jogar um pouco de conversa fora com meu amigo anfitrião, fui da Recoleta ao Congresso sem pressa, passei no Starbucks, peguei um ônibus para Avellaneda, onde mora a família do meu marido. Dali pra frente, tirando uma coisinha aqui e outra ali, iniciei uma viagem sentimental inteiramente gratuita que aos poucos foi perfurando o hermetismo da Argentina em ressaca: a milanesa napolitana caseira preparada com mucho amor pela minha sogra, um choripan acompanhado de Fernet com Coca-Cola na parrilla do meu cunhado, várias cervejas com três amigos queridos num daqueles barzinhos alternativos da Guardia Vieja em Almagro (meu primeiro endereço em Buenos Aires), um churrasco preparado para mim por aqueles e outros amigos no dia seguinte, uma saideira na varanda com a louca da Júpiter na sua casa em Colegiales.
E, antes que eu pudesse temer o fim daquela trip etílica, gastronômica e absurdamente carinhosa, lá estava eu a caminho de Montevideo para iniciar a parte profissional da viagem. Tudo muito rápido, mas o suficiente para servir de terapia desses momentos estranhíssimos que vivemos no Brasil dos dias de hoje; afinal, é como se tivesse confirmado a existência de uma casa para onde eu sempre poderei voltar quando a minha própria parecer estranha demais.
Em outubro do ano passado, enquanto eu operava de longe o fechamento do contrato do meu apartamento na capital argentina e orientava o meu marido sobre as minhas coisas – o que deveria vir, o que deveria ser doado e o que deveria ficar guardado na casa da minha sogra – um dos itens imateriais desse espólio era esse blog, que ficou em suspenso desde então.
Lembro de haver começado a escrever um post de despedida mais de uma vez, alguns mais lacrimosos e outros cheios de esperança de que, estando logo ali e com tudo lá que eu deixara plantado, nunca mais eu precisaria dizer adiós para a minha Buenos Aires querida. Nunca consegui finalizar e menos publicar.
No meio tempo surgiram algumas propostas de passar o blog adiante, a opção de tirar ele do ar ou de simplesmente, como fiz, deixá-lo pairando como se aguardasse o meu retorno.
Pensei que, mais por inércia do que por qualquer outra coisa, havia escolhido a última opção – mas isso não é verdade. Voltar a escrever nele, nem que seja sobre uma brevíssima passagem de dois dias e meio, carregada de nostalgia e ternura, abre um possibilidade da qual eu não penso em prescindir. Resta nele uma Buenos Aires muito minha (não de Cristina nem de Macri) a que, como tudo indica, eu sempre terei um prazer enorme de revisitar.