Em outros Briefings, descrevi a encruzilhada em que se encontra o governo argentino: de um lado está o “mercado”, pedindo reformas ortodoxas, o fim das restrições ao câmbio e ao comércio, além do pagamento das dívidas do país com os credores estrangeiros; do outro estão os trabalhadores daqui que, historicamente acostumados a níveis de vida muito mais altos que a média latino-americana, vêm se estapeando para conseguir sair dessa penúria que se acentua desde a década de 80. Quando parecia dar uma afrouxada, agarrou todo mundo pelo pescoço em meados de 2012 e a crise não dá sinais de trégua.
Informações desencontradas dão conta de mais de 500 mil demissões e uma inflação de 40% nos últimos 6 meses, mas é o futuro que preocupa mais o povo daqui. Com as eleições presidenciais de 2015 se aproximando, ninguém se arrisca a dizer exatamente quem serão os candidatos, muito menos qual deles irá ganhar. E é esse cenário de incerteza que parece conflagrar tudo.
O governo descarta o terror, exibindo dados em que, por A mais B, a situação das classes populares tem melhorado muito desde a ascensão de Nestor Kirchner à presidência. Identificou o inimigo no exterior, os tão falados fundos abutres, e estendeu a classificação a certos atores internos mais conservadores e, naturalmente, mais mais ricos.
Entretanto, a situação não se apresenta como uma luta de classes como nas antigas, pois à esquerda da Presidenta estão numerosas centrais sindicais e movimentos sociais muito mais radicais que têm dado uma dor de cabeça danada. De greve em greve, manifestação em manifestação, essa gente vai deixando claro o seu discurso.
Essa semana foi a vez da greve geral, convocada há cerca de um mês por Hugo Moyano, um dos maiores líderes sindicais da Argentina.
Hugo Moyano
Em primeiro lugar, é interessante observar quem é Hugo Moyano, secretário-geral da Central Geral do Trabalho (CGT). Com raízes no sindicato dos caminhoneiros, ele comanda uma tropa fiel de cerca de 200 mil seguidores facilmente mobilizáveis e com o poder de basicamente parar o país, já que os grãos exportados, maior fonte de divisas daqui, é transportado na boleia de seus caminhões. Sob seu comando direto, estão motoristas e funcionários dos pedágios, por exemplo; o que significa que basta Moyano se manifestar e todos cruzam os braços. Investigado por enriquecimento ilícito, o controverso líder sindicalista rompeu com o governo em 2011 – retalhando ainda mais o movimento sindical local.
Aliás, esse é um dado que se deve levar em conta: as duas centrais sindicais do país estão literalmente divididas há décadas. Moyano lidera a chamada CGT Azopardo, mas existe uma outra CGT que é liderada por Antonio Caló e que apoia o governo de Cristina Kirchner.
Por outro lado, também existe a CTA, uma dissidência da CGT, que atua de forma independente e hoje é liderada por Pablo Micheli.
A greve geral de ontem teve a adesão da CGT de Moyano e da CTA, que em teoria representam tão somente 25% do movimento sindical argentino; mas que, no entanto, como eu disse antes, controlam setores estratégicos, como transportes, e que têm grande poder de mobilização. Dessa maneira, ontem não funcionaram trens, parte dos metrôs e foram bloqueadas as maiores vias de acesso à cidade de Buenos Aires. Calcula-se que a adesão, voluntária ou não, à greve foi de 85% no final das contas, embora o governo negue.
Obs.: A greve geral de ontem foi muito menor do que a de 10 de abril desse ano. Com os ônibus funcionando, o movimento na capital estava razoável, embora algumas lojas e bancos estivessem fechados.
Durante uma grande manifestação que percorreu a Avenida de Mayo desde a Casa Rosada até o Congresso na quarta-feira (27), estive conversando com Pablo Micheli (Secretário-Geral da CTA), Alejandro Bodart e Vania Ripoll (ambos do MST, Movimento Social dos Trabalhadores). Mais do que pedir um aumento para os salários e aposentadorias, carcomidos pela inflação, eles me disseram que estão lutando também por:
- o fim do imposto de renda para os trabalhadores, já que para eles, não sendo lucro e remunerando o trabalho, salário não deveria ser taxado;
- uma lei que impeça as demissões e férias coletivas por um ano; e
- expropriação estatal das empresas que demitem trabalhadores.
Em uma entrevista com Bodart no mês passado, ele foi mais longe: todo o sistema bancário da Argentina deveria ser privatizado.
Para eles, Cristina Kirchner está a favor da banca internacional, dos yankees, como eles dizem aqui, e está enganando o povo argentino com meias-reformas, maquiagens. Micheli dizia de maneira bastante contundente:
“Vimos essa situação na década de 90, não vamos deixar que se repita!”
Da outra extremidade, como eu já falei e como se lê na mídia ocidental sempre quando se fala da Argentina, Cristina está se lixando para os mercados internacionais e está levando o país a uma aventura populista de graves consequências.
Esses dias, por exemplo, um artigo do Wall Street Journal alertou que a Argentina já deve estar em recessão. De acordo com o periódico, o país convive com uma “combinação tóxica” de crescimento econômico fraco e inflação alta, enquanto as reservas internacionais desmoronam pela fuga de capitais e intervenções para conter a montanha-russa cambiária. Em cerca de dez dias, a cotação paralela do peso passou da casa dos AR$ 12 para os quase AR$ 15 – uma situação que deve piorar, já que os preços da soja no mercado internacional têm tendência de queda a partir do terceiro trimestre.
Os analistas consultados pelo WSJ são unânimes: o país está irresponsavelmente jogando com a política macroeconômica para garantir um crescimento em detrimento das reservas.
No meio desse fogo cruzado, o governo claramente tenta se posicionar ao lado dos trabalhadores. Essa semana, propôs duas leis no Congresso:
- a chamada “lei do pagamento soberano”, que expliquei no último Briefing; e
- a Lei do Abastecimento, que cria a justiça do consumidor e dá ao governo mecanismos de intervenção nas empresas
Sem poder de maneira alguma baixar a arrecadação, naturalmente nem considera a possibilidade de ceder à reivindicação dos sindicatos referente ao imposto de renda. Alega, contudo, que este imposto só atinge 10% da população e que favorece a distribuição de renda. Dessa maneira, acusa aqueles que convocaram a greve de fazer uso político de seu poder de mobilização.
Mario Wainfeld do Página/12 resumiu bem a situação:
“Pela oratória dos sindicalistas, a Argentina seria uma comunidade organizada. Harmoniosa em todos os seus estamentos, é somente perturbada por um governo avesso, depredador e até psicopata – a mesma versão infantil que propagam os meios hegemônicos, as corporações patronais, as multinacionais e, por sua vez, os principais membros da oposição. Um estranho sentido comum.
Hoje, os sindicalistas afirmaram que mais greves gerais estão por vir, o que, junto com as previsões no mínimo pessimistas dos analistas econômicos, prenunciam um fim de governo bastante conturbado para Cristina Kirchner. Não é uma novidade.
Desde que cheguei aqui, semana sim semana não aparece uma nova informação que dá conta de decretar o fim da Argentina. Na primeira vez, eu realmente cheguei a acreditar que tudo estava perdido, mas minha amiga Gabriela Grosskopf Antunes (colunista no Globo Online e jornalista da versão em português do Clarín) cantou a bola:
“Esse país é assim mesmo; amanhã aparece uma nova catástrofe e depois de amanhã tudo volta ao normal”
Até semana que vem!